Membro da RED INTERNACIONAL DE CUENTACUENTOS

sábado, 22 de janeiro de 2011

ENCONTRO COM SEU LUNGA

Por Josy Correia 

Quem vê o pacato senhor Joaquim Santos Rodrigues, sentado à porta de sua loja à rua Santa Luíza, em Juazeiro do Norte, Ceará, pode não perceber que passa diante de um personagem quase lendário, tão pouco perceba seu famoso pseudônimo “Seu Lunga”.

Nascido em 18 de agosto de 1927 no município de Assaré, viveu na serra de São Pedro (Caririaçu) e atualmente o nosso Seu Lunga reside em Juazeiro do Norte (CE), onde constituiu família e possuí comércio de sucatas e objetos usados.

Inspiração de muitos cordelistas de sua região e de todo nordeste brasileiro, seu Lunga parece desconhecer às origens de seu arquétipo. Segundo ele, o apelido vem da infância, dito por uma mãe-preta que chamava-o “calunga”.

Seu Lunga me diz que as histórias associadas à sua pessoa, foram na verdade inventadas pelos poetas da literatura de cordel e mostra-se contrário a associação de sua imagem às histórias da tal personagem mais zangada do mundo.

“De cinquenta histórias nenhuma é verdade. Engraçada ou desgraçada eu não gosto: uma coisa que eu não sou, não adianta”, insiste.

Por outro lado, reconhece em si mesmo a intolerância diante de perguntas descabidas.

Parte do imaginário e da tradição oral, como Malazartes, Nasrudim ou Mineirinho, Seu Lunga (e suas histórias do tipo “tolerância zero”), representam um tipo pitoresco equiparado a boa leva de tipos/personagens encontrados na cultura oral universal, cada um com suas peculiaridades.

Diferente de alguns que só existem no imaginário de seu povo, Seu Lunga existe “em carne, osso e farinha” – como dizem meus conterrâneos cearenses.

O que pouca gente sabe é que muito além do tipo zangado, a presença deste homem de 83 anos guarda sabedoria e vitalidade. Ele discute sobre qualquer tema: desde as histórias associadas à sua pessoa, à educação, política e ciência, passando pelos causos e histórias reais que presenciou até as profecias e milagres de Padre Cícero, por quem configura respeito e devoção.

“E da terra a divina graça, no mundo mimosa luz,
Só foi quem morreu na terra, mas foi gravado na cruz,
Um homem que se chamava, mais um menino Jesus”


As histórias dos milagres associados ao padre pelo povo da região, além de curiosas, me soavam afetivas. Lembravam-me àquelas contadas por minha avó e minha mãe, igualmente devotas e nascidas na mesma região.

Só não resolva aparecer lá “de gaiatice”, com alguma pergunta óbvia para constatar a sua fama singular ou poderá se arrepender!
E se bem observar, conhecerá um homem simples, questionador e... poeta!

“Quem me dera ser um pássaro, para no mundo voar,
Eu ia para o oceano, depois podia voltar,
Mas vinha cair em teus braços, somente pra consolar”


Depois de ouvir com atenção e entusiasmo suas histórias (reais) e seus versos, combino com ele de retornar no próximo dia para um novo encontro.

Os versos são como a aura de um nordestino, portanto, minha tarefa é de estender este campo magnético da palavra com nossos leitores, compartilhando algumas de suas estrofes.

“Quem não mora muito longe, morando perto é vizinho,
Encostado a essa mata, mata que tem espinho,
Cada pau tem o seu galho, cada galho tem um ninho,
Não vou morar nesta mata, por causa dos passarinhos...”



Seu Lunga mostrou-se preocupado com a atual situação política em nosso país. De visão conservadora, me pergunta o que eu acho da nova presidente. Para ele “Todos os homens e todas as mulheres que atingem o poder vamos supor, é assim: elas querem fazer uma coisa, a mulher, ela tem inteligência, tem moral, tem respeito, tem isso, tem aquilo, quer dizer, tem a teoria, mas os assessores atrapalham, porque não querem ser inferiorizados, no fundo, não tem um homem em sua natureza que vai se deixar ser mandado por mulher.”

Polêmicas à parte, muita razão tem este ex-agricultor semi-analfabeto.
Não nos referindo apenas a esta sua última colocação, mas em sua “Filosofia intolerante” (título de meu próximo livro sobre vida e histórias de Seu Lunga) sob muitos outros aspectos que vocês encontrarão em suas próximas colocações. Posso afirmar que muito “letrado” não possui sua educação e sabedoria.
Seu Lunga fala em metáforas, questiona e dita.

Dentro de sua construção lexical simplória, uma de suas perguntas freqüentes aos visitantes é:
- “Você tá achando o brasileiro muito sabido ou muito besta?”
(E você, caro leitor, o que responderia a esta pergunta?)

Para ele ser brasileiro só é uma vergonha devido à corrupção que assola e divulga o país pelo mundo afora. Ele faz um apelo às autoridades (“os homi que formam lei”) para ver se melhoram as leis de nosso país.

E se você ainda não parou para pensar no que realmente pode está faltando em nosso país, aqui vai a opinião de Seu Lunga, neste pequeno caso que eu presenciei durante o nosso encontro:



QUE É QUE TÁ FALTANDO

Uma vez, vieram aqui me visitar três autoridades: uma juíza, um promotor e um delegado.

Aí, pegaram a conversar, queriam me conhecer, que não sei o que, que bababá...

Eu disse:
- “Me digam uma coisa: o nosso Brasil é muito bom: tem muito ouro, muita prata, muito metal, muito ferro, muita terra, muito petróleo, muita gente – que é que tá faltando?”

– “Está faltando educação!”, disse a juíza.

Aí eu disse:
- “E o senhor, promotor?

Ele disse:
- “A educação!”

- E o senhor, seu delegado?

Ele disse: 
- “Educação”.

Nenhum dos três passou no meu teste. Nenhum!

Eu digo: porque quem está fazendo mais bandaleira no nosso país são os “educados”.


Como é que tá faltando educação???
Tá faltando é justiçaaaaaaaaaaaaaaaa!!!



Conheci Seu Lunga, homem tão bem humorado que contando, não acreditariam.

“Me deito na terra quente, me acordo na terra fria,
Peguei na perna da véia, pensando que era a da fía,
Mas perna de véia é arranhenta e perna de moça é macia”


E com certa nostalgia, ao encontrar esse homem que me lembrava meu bisavô Padim João, me despeço de Seu Lunga, numa tarde ensolarada, sertaneja e caririzeira, em meio ao “furdunço” do centro da cidade, sob as bênçãos da imagem de Padre Cícero sobre o Horto e o conselho que me dera para arrumar um bom marido: “somente conhecendo bem à procedência do cidadão”. Era Dia de Reis. E eu recebi histórias de presente, dignas de um Rei Menino.


“Terra boa é o Cariri, tem mangaba e tem piqui,
E ao redor de sete léguas, tem muito “fí duma égua” que nega até um piqui”

Salve seu Lunga!



Para Ler Seu Lunga:

- Pesquise os cordéis disponíveis no acervo literário do Ateliê da Palavra (http://www.ateliedapalavra.zip.net/)!
- Aguarde para o segundo semestre de 2011 o lançamento da biografia e obra completa de Histórias de Seu Lunga em cordel, pela pesquisadora cearense Josy Correia, autora deste texto.
(Correia, Josy Maria. "Sabedorias de Seu Lunga - A Filosofia intolerante". Ateliê da Palavra, 2011).






*Créditos das fotos: Josy Correia

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CURRICULO DE JOSY MARIA CORREIA

Josy Maria Correia é contadora de histórias, atriz, compositora, musicista autodidata, escritora, arte-educadora, produtora cultural e pesquisadora de cultura popular brasileira e oralidade latino-americana, desde 1998. Formada pelo Colégio de Direção Teatral do Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual – Secult-Ce (1999-2001).

Como pesquisadora de oralidade tradicional brasileira e latino-americana percorreu oito paises: Bolívia, Colômbia, México, Cuba, Argentina, Uruguai, Peru e Brasil, coletando contos tradicionais e mapeando narradores.


Desenvolve cursos, palestras, oficinas e apresentações em eventos nacionais e internacionais, como: Mostra SESC Cariri das Artes (CE); Bienais Internacionais do Livro de Fortaleza (CE); Encontro Internacional de Contadores de Historias – Boca do Céu (SP); Simpósio Internacional de Contadores de Historias (RJ); Conto 7 em Ponto – Instituto Cultural Aletria (MG): Seminários de Educação Infantil e Arte-educação das Universidades Federal e Estadual do Ceará (CE); Circuito Cultural Banco do Brasil (CE); Festival de Teatro Brasileiro (MG/ES); Encuentro Internacional de Historias y Leyendas de Buga (Colômbia); Encuentro Internacional de Cuenta Cuentos Texturas 2010 (México); e, Festival de Narracion Oral Primavera de Cuentos em La Havana (Cuba).

Como arte-educadora atuou em projetos sociais como o Proares e o Centro de Convivência e Creche Madre Regina (http://www.crechemadreregina.zip.net/) e escolas da rede pública e privada de Fortaleza (CE) e desenvolve programas de Formação de Educadores em diversas instituições e municípios do estado do Ceará, desde 2002 através do núcleo Ateliê da Palavra, na qual é presidente.

Fundadora da Cia. Catirina de Pesquisa e Produção – Ateliê da Palavra (Fortaleza-Ce) (http://www.ateliedapalavra.zip.net/), agraciada pelos prêmios Intercambio e Difusão Cultural 2009 do Ministério da Cultura (Brasil/Colômbia) e Funarte – Fundação Nacional das Artes na categoria Artes Cênicas na Rua 2009 com o projeto Palco de Areia.

Pesquisa, dirige e produz espetáculos cênicos (teatro de rua/circo), performances, contações de histórias, eventos e shows musicais, tendo como referencial a Cultura Tradicional Popular Brasileira.

Idealizadora e curadora do projeto “MAR DE PALAVRAS, JANGADA DE HISTORIAS” (http://www.mardepalavras.nafoto.net/), desde 2006, oferecendo sessões de contos itinerantes para crianças e adultos. O projeto permaneceu por quatro anos ininterruptos no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura (Fortaleza-CE) e ampliou-se como Circuito Litorâneo PALCO DE AREIA, pecorrendo atualmente no litoral do estado do Ceará, coletando historias de pescadores e promovendo rodas de historias para colônias costeiras. A partir de 2010 o circuito Palco de Areia passa a abranger todo o litoral brasileiro (http://www.palcodeareia.blogspot.com/).

É curadora e idealizadora do Encontro Bienal de Narradores e Narrativas Tradicionais - CORDÃO DE HISTÓRIAS (http://www.cordaodehistorias.zip.net/) desde 2005, além de idealizadora da Rede Internacional de Narradores Tradicionais (http://www.narradorestradicionaisdomundo.blogspot.com/).

Membro da Red Internacional de Cuentacuentos (http://www.cuentacuentos.eu/).

Desenvolve projetos de Formação de Contadores de Histórias e Educadores no Ceará e atualmente em Minas Gerais, em parceria com o Instituto Cultural Aletria de Belo Horizonte - MG (http://www.aletria.com.br/).


Contatos: (31) 9176.7663
ciacatirina@hotmail.com
www.ateliedapalavra.zip.net

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Meus primeiros narradores orais...


Folhetos de Cordel


A Literatura de Cordel fez parte de minha família desde a infância de meus bisavôs. Muitas de suas histórias difundiram-se no nordeste brasileiro, desde sua chegada a partir do século XVI, especialmente no período colonial. Dependurados em cordões (dái a origem de seu nome "literatura de cordel"), os folhetos volantes despertavam a atenção dos transeuntes nas feiras populares, principalmente quando recitados por seus poetas-narradores ou cantados pelos repentistas, rabequeiros e emboladores da época.

Meus bisavós, aprendendo alguns versos e histórias, repassavam aos seus filhos e assim sucessivamente até chegar a mim. Recordo com muito carinho de meu bisavô padim João que gostava muito de recitar quadrinhas como esta:

"Quem tem barba puxa a barba,
quem não tem puxa bigode,
a mulher como não tem,
puxa a barba do bode!"

Padim João comigo (Josy Correia aos 3 anos de idade), Fortaleza, março de 1985

Minha avó materna Fransquinha Justino (foto abaixo) contava oralmente histórias e romances para minha mãe, também derivados em sua maioria de folhetos de cordel como "Os doze pares da França", "O Boi dos Chifres de Ouro" ou "Pavão Misterioso". Além das histórias e versos, perpetuaram-se cantigas, canções de ninar e histórias religiosas (como os milagres do santo padre do Juazeiro do Norte Cícero Romão Batista). Inclusive, foi esse padre que abençoou o casamento de meus bisavós quando ambos estavam prometidos a outros pretendentes e, indo pedir a benção do padre para seus casamentos, o mesmo diz que devem casar-se um com o outro e não com os pretendidos. Assim se faz e os dois casam-se vivendo felizes para sempre, como nos contos de fadas!


Fransquinha Justino (Juazeiro do Norte-CE)

Ainda através de minha mãe, Leni Crispim, herdeira de tantas histórias e que possuía rica oralidade, encantando-se em recontá-las para nós e de meu pai José Correia Filho que sempre gostava de recitar quadrinhas humorísticas, piadas, anedotas e pequenos causos, pude vivenciar o universo fantástico de nossa rica tradição oral.

 
José Correia Filho (Quixadá-CE)

Depois que cresci procurei registrar essas memórias, que muito contribuem ao meu trabalho como artista e contadora de histórias.

As quatro gerações da família Justino Correia: Leni Crispim, Fransquinha Justino, Monalisa Correia e Geovana Correia
(Juazeiro do Norte-CE e Fortaleza-CE)


Não podia deixar de citar neste espaço especial do meu caminho de aprendizado com estes primeiros narradores orais, duas pessoas fundamentais em minha vida, com quem muito aprendi. Não temos parentesco de sangue, mas certamente união de espírito-contador-e-parceiro: Júlia e Glauci Fiuza. Duas mulheres que me fizeram sentir a suavidade da vida através de suas histórias, vivenciadas a cada dia, pelo prazer de suas convivências em minha vida. Glaucita (grande narradora oral!) nos fazia rir com suas piadas, causos, anedotas e versos inesquecíveis e Júlia, com as histórias reais de sua infância e com as histórias lindas que criamos juntas.

À estas pessoas, parte de minha própria história, minha gratidão e amor!


Júlia Fiuza

Glauci Fiuza (Dona Glaucita)


Valorizar e preservar estas histórias repassadas da tradição oral é para mim uma missão e um grande prazer: referência de vida!


Josy Correia na época de suas primeiras histórias...
(Fortaleza, Ceará, Início dos anos 80)